sábado, julho 09, 2005

"Como tornar-se doente mental", de J.L. Pio Abreu

Dei por mim a vaguear por Lisboa, sem qualquer consciência do que estava a fazer, ou do que queria fazer. Deambulava em estado invisível pelas estações do metropolitano, pelas lojas devastadas pelos saldos, pelas ruas preenchidas por rostos vazios e tristes. Senti-me consumida pelo cansaço, e sem encontrar razão para o estado não anunciado, sentei-me numa esplanada. O lugar era estratégico e decisivo e por momentos parei o tempo. O cenário foi desastroso: um retrato consumido pelo tempo, rasgado pela ausência de emoções, invadido e consternado. Naquele momento percebi que somos todos invisíveis, que vivemos de forma distraída, que o sol brilha no azul fantástico de Lisboa, na esperança de ser contemplado com um sorriso, que as janelas e as varandas contam muitas histórias, e que as ruas são decoradas por seres humanos, que se julgam diferentes e condenados a esta forma de vida.
O relógio voltou a dar sinal e por cada segundo observei um rosto, um gesto e uma palavra. Horas de palavras, rostos e gestos, provocaram-me uma enorme ansiedade, construíram silogismos sem sentido. Quando recuperei a consciência estava na FNAC. Ainda desfocada, consegui perceber que tinha uma pessoa de colete verde, encostada a um balcão, de sorriso amestrado, e de dedos preparados ao teclado para satisfazer os meus caprichos. Na tentativa de recuperar a minha condição humana, perguntei por um livro que tem todas as respostas para nos libertar da “tal forma de vida”. Só o título tem efeitos imediatos. Inquiri então, àquele ser amestrado, se o livro “Como tornar-se doente mental” andava pelas prateleiras daquele supermercado. Os que aguardavam vez e o ser do colete verde, num silêncio profundo e de olhar complacente, renderam-se às evidências.
Aguardei em sufoco pela solução tão desejada. Estava sorridente, controlada por gargalhadas compulsivas que teimavam em não sair. O livro foi entregue em mão e de ar resignado, o ser do colete verde, desejou-me uma excelente tarde com enorme condescendência. Os que aguardavam abriram alas de jeito gentil e assustado. Já de saída, dirigi-me a uma caixa para pagar uma nova forma de vida. Não tendo ainda autoridade para fugir com o dito, soltar os alarmes e reunir os seguranças, resolvi ser normal. Na caixa, estava um rapaz de ar saudável, que parou literalmente quando viu a minha aquisição. Ficou consumido. De saudável passou a depressivo, ansioso, paranóico, esquizofrénico e maníaco….desenfreado correu para um microfone e anunciou que aquele era o último exemplar de uma edição acabada. O caos instalou-se e todos, todos os meus semelhantes perceberam que a solução para não ser invisível, estava nas minhas mãos: o último exemplar.